Há uma quebra na história
Vamos mudar o mundo?
Às vezes você tem uma séria vontade de estapear as pessoas, só para fazê-las acordarem e perceberem as injustiças deste mundo. Como podem viver em seus mundinhos banais, quando há quem passe fome e totalmente à margem de qualquer conforto ou assistência? Esta talvez seja a sua maior revolta. Por isso, você tenta fazer a sua parte. Talvez por meio de um trabalho voluntário, participando de movimentos populares ou somente se exaltando em rodas de amigos menos engajados. De qualquer maneira, se você consegue de fato comover pessoas com seu discurso apaixonado e, ao mesmo tempo, baseado numa lógica de compaixão e igualdade que ninguém pode negar, você já fez a diferença.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
"Todo filho é pai da morte de seu pai" Fabrício Carpinejar
"Feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece
somente no enterro e não se despede um pouco por dia."
Há uma quebra na história
Há uma quebra na história
familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem
sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai. É quando o pai envelhece e começa
a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso. É
quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar
sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e
demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. É quando aquele pai, que
antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a
porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. É quando aquele pai, antes
disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus
remédios. E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar
que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de
nossa vida para morrer em paz. Todo filho é pai da morte de seu pai. Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez.
Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados
ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta. E assim como
mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando
cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais. Uma das
primeiras transformações acontece no banheiro. Seremos pais de nossos pais na
hora de pôr uma barra no box do chuveiro. A barra é emblemática. A barra é
simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas. Porque o chuveiro, simples e
refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não
podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas
paredes. A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. Pois envelhecer é
andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente? Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete. E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia. Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira: — Deixa que eu ajudo. Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado: — Estou aqui, estou aqui, pai! O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.
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