Vamos mudar o mundo?

Às vezes você tem uma séria vontade de estapear as pessoas, só para fazê-las acordarem e perceberem as injustiças deste mundo. Como podem viver em seus mundinhos banais, quando há quem passe fome e totalmente à margem de qualquer conforto ou assistência? Esta talvez seja a sua maior revolta. Por isso, você tenta fazer a sua parte. Talvez por meio de um trabalho voluntário, participando de movimentos populares ou somente se exaltando em rodas de amigos menos engajados. De qualquer maneira, se você consegue de fato comover pessoas com seu discurso apaixonado e, ao mesmo tempo, baseado numa lógica de compaixão e igualdade que ninguém pode negar, você já fez a diferença.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Respeito!

"Respeito minhas raízes. O lar de onde vim e a casa onde moro. O que me alimenta. E as roupas que me vestem.
Respeito o meu corpo. O natural dos meus cabelos. Meu tipo físico. O formato do meu rosto. E a cor dos meus olhos.
Respeito a minha personalidade. A risada estranha que eu tenho. As lágrimas que aparecem espontaneamente. Os braços tão sempre carregados de abraços. E a teimosia de buscar sempre andar de mãos dadas com a liberdade.
Respeito os meus sonhos. O direito que tenho de lutar por aquilo que acredito. E mudar de opinião quando eu ver que aquilo que penso, já não faz mais sentido.
Respeito as músicas que ouço. Os livros que leio. Os momentos que fotografo. E filmes e peças de teatro que assisto.
Respeito o que sou. Respeito a minha essência, por ter consciência de que sou uma parte única no segredo do Universo.
E por saber da sua singularidade como um ser, dotado de vida, eu te respeito também."
▬ Miyahara, S.

sábado, 9 de agosto de 2014

SER PAI …

Publicado em agosto 9, 2014

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Pai de verdade mesmo sabe que ser pai não é simplesmente recolher o fruto de um momento de prazer, mas sim perceber o quanto pode ainda estar verde e ajudá-lo a amadurecer.
Pai de verdade mesmo não só ergue o filho do chão quando ele cai, mas também o faz perceber que a cada queda é possível levantar.
Ele não é simplesmente quem atende a caprichos: ele sabe perceber quando existe verdadeira necessidade nos pedidos.
Pai de verdade mesmo não é aquele que providencia as melhores escolas, mas o que ensina o quanto é necessário o conhecimento.
Ele não orienta com base nas próprias experiências, mas demonstra que em cada experiência existe uma lição a ser aprendida.
Pai de verdade mesmo não coloca modelos de conduta, mas aponta aqueles cujas condutas não devem ser seguidas.
Ele não sonha com determinada profissão para o filho, mas deseja grande e verdadeiro sucesso com sua real vocação.
Ele não quer que o filho tenha tudo que ele não teve, mas que tenha tudo aquilo que merecer e realmente desejar.
Pai de verdade mesmo não está ali só para colocar a mão no bolso para pagar as despesas: ele coloca a mão na consciência e percebe até que ponto está alimentando um espírito de dependência.
Ele não é um condutor de destinos, mas sim o farol que aponta para um caminho de honestidade e de bem.
Pai de verdade mesmo não diz “faça isto” ou “faça aquilo”, mas sim “tente fazer o melhor de acordo com o que você já sabe”.
Ele não acusa de erros e nem sempre aplaude os acertos, mas pergunta se houve percepção dos caminhos que levaram o filho a esses fins.
Pai de verdade mesmo é o amigo sempre presente, atento e amoroso – com a alma de joelhos – pedindo a Deus que o oriente na hora de dar conselhos.
Feliz Dia dos Pais!

quarta-feira, 30 de julho de 2014

“O amor que acende a lua”

“Quanto a mim, não desejo ser enterrado em ataúde. Sofro de
claustrofobia. A ideia de ficar trancado numa caixa me causa arrepios. Acho a cremação um lindo ritual. Neruda declarou que os poetas são feitos de fogo e fumaça. As cinzas, soltas ao vento, lançadas sobre o mar, colocadas ao pé de uma árvore, são símbolos da leveza, da liberdade e da vida. Teria de haver música, do canto gregoriano ao Milton. E poesia. Nada de poesia fúnebre. Cecília Meireles para dar tristeza. Fernando Pessoa para dar sabedoria. Vinicius de Moraes para falar de amor. Adélia Prado para fazer rir. E Walt Whitman para dar alegria. E comida. De aperitivo, Jack Daniel’s. Ainda vou contar a estória do Jack - estória de amizade. Comida de Minas. De entrada, sopa de fubá com alho, minha especialidade. Depois, frango com quiabo, angu e pimenta, a mais não poder. E, de sobremesa, minhas frutas favoritas, se sua estação for: caqui, manga, jabuticaba, banana-prata bem madura.
Coroas de flores mortas, nem pensar! Pedirei aos que me amam que semeiem flores em algum lugar - um vaso, um canteiro, a beira de um caminho. Se não for possível, que distribuam pacotinhos de sementes entre as crianças de alguma escola, entre os velhos de algum asilo. E, se for possível, uma árvore. Ah! Que linda prova de amor é plantar uma árvore para que alguém amado, ausente, possa se assentar à sua sombra.
Se você for primeiro do que eu, Carolina, prometo: não mandarei coroa. Mas plantarei uma flor.”
— Rubem Alves, no livro “O amor que acende a lua”

sábado, 5 de julho de 2014

Estar de bem com a vida!


Conheça as pistas que nos fazem seguir pelo caminho da felicidade para ficar de bem com a vida ou da amargura




Gente de bem com a vida percebe que a felicidade é um estado interior que não precisa ser prejudicado pelo que acontece fora de nós
Ilustração: Eder Redder
"Cuidado, a vida é pra valer. E não se engane não, tem uma só. Duas mesmo, que é bom, ninguém vai me dizer que tem sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do céu, e assinada embaixo: Deus! e com firma reconhecida."

A frase acima só podia ser de um poeta transgressor como Vinícius de Moraes. É uma das partes faladas do Samba da Bênção, que ele compôs e Baden Powell musicou. Enaltecendo a beleza do samba e a aventura do amor, ele fala mesmo, em seus versos, da arte de viver. Pede bênção aos amigos e diz que já viajou muitas canções, mas que ainda há muitas para viajar.

Os versos de nosso "poetinha" resumem como poucos a dupla função da poesia: agrada aos sentidos e faz pensar. "Cuidado, a vida é pra valer", não é algo a ser desperdiçado, até porque, "não se engane não, tem uma só". Por isso temos que estar de bem com ela.

Estar de bem com a vida. Esse é um tema que ultrapassa o terreno estéril das frases de efeito e chega ao território fecundo da filosofia. "Creio que aqueles que mais entendem de felicidade são as borboletas e as bolhas de sabão", disse Nietzsche, para depois admitir que invejava a leveza desses seres. "Ver girar essas pequenas almas leves, loucas, graciosas e que se movem é o que, de mim, arranca lágrimas e canções", completou. Pois até o mal-humorado filósofo alemão admitiu que há virtude em buscar a paz com o viver.

E o que é estar de bem com a vida senão a capacidade de manter um estado de alegria a despeito das vicissitudes da própria? É claro que a vida é dura, injusta e muitas vezes cruel. Todos sofremos com as perdas e com as angústias próprias do viver, mas não é disso que estamos falando. As condições externas influem, sim, mas o tema aqui é o estado da alma.

Não me agrada o discurso fácil da autoajuda que insiste que você tem a obrigação de ser feliz. Não, felicidade não é uma obrigação nem uma competência. Não é uma alienação. Felicidade nem sequer é um estado definitivo, e com certeza não é um lugar aonde se pode chegar. Por outro lado, não me agrada também a condição das "vítimas do sistema", que se orgulham de sua amargura e a exibem como um troféu conquistado.

Conheço pessoas que souberam lidar bem com as dificuldades naturais de suas existências e conheço outras que se transformaram em vítimas tristes nas mesmas condições. É claro que há situações de extrema dificuldade, e negar a tristeza que vem junto é negar a própria condição humana. Mas essa não é a questão. Não me refiro às tragédias, e sim às dificuldades corriqueiras, que impregnam nosso cotidiano como o musgo na face sul do tronco das árvores, e que podem, com o tempo, apagar o brilho de viver. A menos que não se deixe que isso aconteça.

Encontrei pessoas de bem com a vida nas grandes cidades, trabalhando em imensas corporações. Encontrei-as também em pequenas vilas do interior ou do litoral. Em lugares pobres e em lugares ricos. Em tempos de tranquilidade e em tempos de crise. Ou seja, em todos os lugares. E também encontrei pessoas de mal com a vida. Onde? Exatamente nos mesmos lugares.

Este talvez seja um dos grandes mistérios da psicologia humana. O que faz a diferença entre esses dois tipos de indivíduos? Será sua genética ou terá sido sua educação?

Lembro-me de meus colegas de colégio. Estávamos todos naquela fase de definir o futuro, de escolher a faculdade, de sonhar com o sucesso. Eu, por exemplo, já tinha me decidido: queria ser médico. E também queria ser rico, famoso, comprar um carrão, viajar bastante e ter um monte de namoradas, claro. Afinal, éramos todos adolescentes, cheios de espinhas e de sonhos.

Havia ali os futuros engenheiros, advogados, empresários, e até um diplomata. E havia Fabinho. Ele não tinha planos grandiosos, não queria ficar rico nem famoso. Quando alguém lhe perguntava o que queria ser na vida, ele respondia com um sorriso: "Eu quero é ser feliz". E eu via sinceridade em sua afirmação.

O Fabinho era desses garotos raros que, ao contrário da maioria, não parecia estar em guerra contra o mundo. Não tinha inimigos, não se “empatotava” para odiar a outra "patota". Não se queixava das exigências dos professores nem da dureza das provas, que, aliás, ele tirava de letra.

Fabinho não era rico, nem bonito, nem atleta talentoso. Ele era como a maioria, com virtudes e fragilidades. Era como eu, só que ele tinha algo que lhe era singular. Ele parecia estar de bem com a vida.

De bem com o tempo

Encontrei, como já disse, muitos Fabinhos pela vida afora, como também encontrei seus opostos, os amargurados crônicos. Qual o segredo? Não sei, mas, para começo de conversa, estou certo de quenão existe uma fórmula para ser feliz - e, se existir, ainda que seja apenas uma pista, com certeza ela é pessoal e intransferível.

Entretanto, pessoas de bem com a vida têm, sim, algo a nos ensinar. A primeira lição é que elas não caem na armadilha fácil da felicidade imediata, aquela que é confundida com o prazer descartável, nem transformam a felicidade em um eterno projeto futuro. Gente de bem com a vida percebe que felicidade é um estado interior que não precisa ser prejudicado pelo que acontece fora de nós, e também se dá conta que, se a única coisa que existe de fato é o presente, o futuro vai virar presente e, quando isso acontecer, ele será tão melhor ou tão pior dependendo das providências que tomarmos no presente atual.

Há um quê de sabedoria nessa postura, e um monte de inteligência aplicada ao bem viver, pois, em síntese, quer dizer que temos que viver o presente com um olho posto no futuro, aproveitar cada instante como se fosse único e, ao mesmo tempo, organizar-se para o dia de amanhã para não ser tomado de assalto por notícias ruins nas esquinas da vida. Então é isso, estar de bem com o tempo.

De bem com o básico

Mas tem mais. É necessário equipar-se com alguns artigos de primeira necessidade para alimentar a felicidade, nada muito complicado, acredite. Algumas coisas são óbvias, mas invisíveis como o ar, que só é percebido quando falta. A saúde, por exemplo. Então é melhor cuidar da dita-cuja, pois não dá para ser feliz e doente ao mesmo tempo, e não importa a fase da vida. O mesmo se dá com o dinheiro. É parecido com o ar e a saúde, só damos valor a ele quando falta. O ditado popular insiste, há séculos, que dinheiro não traz felicidade. Estou inclinado a acreditar nisso até certo ponto, pois, se o dinheiro não o faz feliz, a falta dele, provavelmente, vai lhe tirar o sono e prejudicar sensivelmente a felicidade interna bruta.

Resolvidos os requisitos básicos, que atrapalham a busca da felicidade se estiverem ausentes, é hora de cuidar dos ingredientes da verdadeira felicidade, aquela que dá gosto de sentir. E eles são pelo menos três: o que fazemos para viver, como gastamos nosso tempo livre e, talvez o mais importante, com quem compartilhamos tudo isso.

De bem com o que se faz

O que fazemos para viver, evidentemente, é nosso trabalho. Ele nos dá o sustento e a dignidade, mas pode nos dar mais, pode dar o verdadeiro sentido da vida. Todos os trabalhos são dignos, mas temos que ouvir nossa vocação e perceber o significado daquilo que fazemos. Assim, teremos não só um trabalho, mas uma carreira; e não realizaremos apenas tarefas, mas causas. Não acho que alguém, para quem o trabalho seja um peso, possa ser feliz de fato. Você se contentaria em ser feliz só depois do expediente e, ainda por cima, odiar a vinheta do Fantástico, que é o prenúncio da segunda-feira?

Cuidar do tempo livre é ter disposição para se divertir. O prazer, a alegria, a diversão são tão importantes quanto seu trabalho ou o estudo. É desse equilíbrio que sai o caldo de cultura que vai alimentar a felicidade. E curtir a vida tem mais uma vantagem: quando você ficar velho, terá boas lembranças como lenitivo para a vida mais recolhida.

De bem com os outros

Por último, mas muito longe de ser menos importante, estão as relações humanas. Biologicamente, não estamos preparados para a solidão, que só é boa quando é por opção e, ainda assim, por pouco tempo. Ter amigos, curtir a família, cultivar boas relações com seus colegas de trabalhos e vizinhos do condomínio. As boas relações nos fazem felizes, sim, alimentam nosso espírito gregário, nos fazem perceber que somos queridos, geram autoestima.

Entretanto, é bom que se diga, há uma relação humana especial, que tem um imenso poder de agregar felicidade, que transforma silêncio em música, folha em flor, distância em saudade, toque em sedução, sorriso em esperança. Estou falando da pessoa especial que está a seu lado, seu companheiro, sua companheira de jornada. Estou falando do amor verdadeiro, que existe, sim, e é bom, muito bom.

Não conheço os detalhes da vida do Fabinho, mas quem me fala sobre ele relata que ele tem andado por aí com aquela cara que só os apaixonados têm, um misto de paz e entusiasmo, a combinação pra lá de perfeita. No fundo, no fundo, não é difícil ser feliz, mas dá um certo trabalhinho cuidar desses detalhes.

E o incontrolável? O fator acaso existe, afinal? Claro que existe, mas seu potencial para gerar felicidade é diretamente proporcional à atenção e inversamente proporcional ao descaso. Já se disse que o acaso tem sempre a última palavra. Mas podemos rever esse conceito, afinal, a última palavra pode estar com cada um de nós, e é dita por aquilo que fazemos com o que o acaso fez conosco. É a isso que se chama estar de bem com a sorte.

sábado, 8 de março de 2014

Me chamem de velha.

Por ELIANE BRUM

A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem.

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”.  Pensei: “roubaram a velhice”.  As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.  Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor.  Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.  O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está.  Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”?  Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem.  O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando.  Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar.  É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.